Meus carros: F100 1958

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Foram tantas histórias com o Fusca laranja que se resolvesse registrar nesse blog todas elas, acabaria virando um livro, quem sabe um dia vira alguma coisa, por enquanto vou guardá-las e me adiantar na série, senão corro o risco de entendiar meus queridos seguidores. Assim, tomo a liberdade de dar um pequeno salto no tempo e dar-lhes uma triste notícia, o Fusca Laranja foi vendido, por uma segunda vez (disse que tem muita história) e, dessa vez, não foi devolvido, apesar do adiantado estado de embriaguez do comprador.

Apaixonado por carros, adquiri o costume de visitar a feira no estacionamento do Anhembi, em São Paulo. Acordava cedo todos os domingos, pegava o ônibus até o Tietê e seguia a pé até o lugar, aproveitando para ver os carros que ficavam de fora do Parque, ocupando as avenidas, estacionados desde a madrugada, aguardando compradores. Não tinha muito dinheiro, mas gostava de poder ver tantos carros à venda reunidos num mesmo espaço, poder apreciar as raridades e rir silenciosamente das esculturas de massa plástica que mal podiam manter-se em pé, tentando iludir com um brilho falso e um pretinho nos pneus carecas. O passeio era coroado com uma deliciosa fogazza em uma simpática barraca de uma família napolitana.

Num passeio desses, dentro do estacionamento, encontrei aquela que me seduziu a primeira vista, uma linda pickup Ford F100, 1958, toda linda, com a lataria inteiramente restaurada num vermelho cereja, com enorme escapamento que se erguia verticalmente um pouco atrás da cabine, cromado como todas as outras peças que adornavam aquela maravilha. O vendedor, mais orgulhoso por sua preciosidade e animado em matar minha curiosidade, abriu o capô, quer dizer, a frente inteira da belezura, pois havia integrado capô e paralamas, abrindo-os para a frente e expondo o belíssimo motor V8, amarelo, com todas as peças brilhantes. Os pneus gigantes, montados sobre rodas largas harmonizavam todo o conjunto.

O preço era inatingível, uma obra de arte para poucos, mas saí do encontro bastante inspirado.

Na semana seguinte, vasculhei a cidade a procura de uma caminhonete daquele ano, velha, afundada na poeira, com a esperança de poder recuperá-la e transformá-la naquela maravilha, armado apenas com a minha boa vontade e nenhuma grana no bolso.

Para um garoto como eu, nada era impossível, acho que todos os garotos de 20 anos sentem-se indestrutíveis e poderosos, talvez uma síndrome de Super-Homem que ainda não foi devidamente estudada, que nos tira o juízo e nos faz idiotas, vitoriosos, tolos e, principalmente, destemidos.

Encontrei várias, muitas sem salvação, outras bonitas, bem conservadas, mas caras. Nenhuma tão suficientemente boa para o meu nível de exigência e barata para o meu bolso. Não podia desistir da idéia, quando pensava em fraquejar do meu objetivo, a imagem daquela gigante vermelha me vinha à mente, com seu enorme motor roncando naqueles escapamentos brilhantes.

Trabalhava na borracharia e sempre fui muito falante, acho que os clientes entravam e saiam enquanto eu continuava contando a mesma história, falando sobre meu desejo, minha procura. Um dia um deles me animou, disse que conhecia um cara que tinha uma caminhonete dessas encostada no fundo do quintal. Insisti e descobri que esse sujeito era um cara conhecido, freguês da oficina, genro de um importante político da região.

Fui atrás, encontrei a casa do sujeito, uma bela residência com gramado e piscina. A F100 abandonada no fundo do quintal estava em tristes condições: pneus vazios, coberta por folhas, com carburador desmontado, sem bateria e sem tanque de combustível. O sujeito me recebeu, mostrei toda minha animação, contei os meus desejos e o convenci a limpar o seu quintal, dando-lhe a certeza de que estava entregando aquele carro de família para alguém que o trataria muito bem.

Soube que a caminhonete era um presente que ele tinha recebido do pai, última unidade de uma frota de uma antiga empresa da família, que havia sido guardada por ter o mesmo ano do seu nascimento. Havia passado por uma reforma, o motor era completamente zero, a pintura era recente, mas um descuido havia causado uma batida na porta do motorista que podia ser facilmente recuperada com um pouco de carinho. O problema era que sua mulher odiava o ornamento no quintal. Todos sabem como são convincentes as mulheres, principalmente quando querem mudar a decoração.

Negociamos um preço e chegamos facilmente a um acordo. Paguei o que podia para limpar o espaço e me comprometi a saldar o restante quando ele me entregasse os documentos atualizados.

A primeira providência para ressucitá-la foi comprar uma bateria nova, enorme, caríssima. Depois, bastou recuperar o carburador, reinstalar o filtro e adaptar um vasilhame plástico de combustível dentro da cabine, alimentando o motor com uma mangueira transparente. O motor acordou com poucas tentativas. O câmbio na coluna de direção, com 3 marchas, era um mistério, mas logo peguei o jeito, pisei na embreagem, consegui engatar a primeira e saí devagarzinho. Me animei, engatei a 2ª e vi o lindo velocímetro subir o ponteiro. Pisei no freio e levei um susto, só umas duas rodas frearam e a bicha balançou feio, me obrigando a segurar o coração, antes que saísse pela boca. Diminuí e, com a responsabilidade de garotos de 20 anos que se acham indestrutíveis, cheguei em casa, distante a mais de 15 quilômetros, enfrentando um trânsito intenso, sem documentos, dirigindo um veículo completamente estranho, com vários problemas mecânicos e um câmbio complicado.

Meu pai quase me matou quando viu aquilo entrando no quintal. Minha mãe surtou. Minhas irmãs me chamaram de maluco. Eu sorria de orelha a orelha, pulando de felicidade.

Agora faltava pouco, trabalhar para conseguir o dinheiro para pagar o saldo restante, comprar as peças para deixá-la em mínimas condições de rodar com alguma segurança pelas ruas e, depois, sonhar com pneus e rodas gigantes, pintura e funilaria nova, hummm, faltava tanto e tão pouco ao mesmo tempo!

O dia-a-dia era transitado com minha valente bicicleta e, quando saía para lugares mais distantes, ônibus. Assim, aos poucos fui encarando a realidade. Meu carro era inútil, mal saía do quintal e minha grana era curta demais. Não demorou para sentir saudades do meu Laranjão.

Aos poucos, fui dando razão aos apelos do meu pai, cheguei a acreditar que havia feito um dos piores negócios do mundo. Então, derrotado, tentei trocar minha preciosidade por um Opala 4 portas, completamente podre, mas que andava. O sujeito, vendo o meu desespero, aceitou o negócio com a condição que ainda lhe pagasse uma boa diferença de volta, dividida em dolorosas parcelas. Aceitei o negócio, fechado numa mesa de bar regada com a cerveja que podíamos pagar. No dia seguinte, levei a F100 para o abate, disposto a fazer a troca. Mas o sujeito mudou de idéia, graças à Deus!!!

Na hora, desanimado com o mico que tinha nas mãos, resolvi rodar por alguns desmanches procurando um tanque de gasolina que pudesse ser adaptado, diminuindo o risco de ver a gasolina explodir no meu colo enquanto dirigia. Estacionei na porta da loja, entrei e procurei a peça que me faltava. Quando voltei para a F100, um sujeito observava atentamente cada detalhe da lataria.

Antes que pudesse reagir, me perguntou se aquela caminhonete era do sujeito que me vendeu. Confirmei e disse que era minha, havia comprado a pouco tempo. Então perguntou se queria vendê-la. Respondi que sim e, como reza a lei da oferta e procura diante de uma pergunta dessas, disse que venderia por um valor que a essa altura me foge da memória, mas que seria suficiente para comprar uns quatro Opalas iguais ao que eu tinha tentado trocar naquela manhã. Para a minha surpresa, o sujeito era o dono do desmanche, me levou até o escritório e preencheu o cheque, sem barganhar. Pediu que um funcionário me acompanhasse até o banco e garantisse o meu saque, a bordo de uma caríssima F1000 cabine dupla, à diesel. Claro que sua intenção não era desmanchá-la, garantiu que a deixaria nova, acredito que até hoje faz parte de alguma coleção.

Cheguei à borracharia com um saco cheio de dinheiro. Meu pai mal podia acreditar, só conseguia me chamar de rabudo por ter conseguido arrancar tanto por um “lixo” como aquele.

Foi mesmo muita sorte, mas o fato é que estava vendendo caro o meu sonho. Sabia que nunca poderia realizá-lo, mesmo assim, até hoje, penso em como teria sido bom. Quando vejo uma F100 dessas, num filme ou num desfile de carros antigos, lembro da minha, uma velha senhora resgatada por um garoto sonhador.

De tanto que já falei dela, ganhei da minha esposa uma linda miniatura de presente, nesse último aniversário. Todos os dias a vejo e relembro aquele primeiro ronco e aquela freada torta que quase me matou.

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